05/11/2009

[Grandes São Os Desertos, E Tudo É Deserto] Álvaro De Campos

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto

Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.

Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes —

Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,

Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.



Grandes são os desertos, minha alma!

Grandes são os desertos.



Não tirei bilhete para a vida,

Errei a porta do sentimento,

Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.

Hoje não me resta, em vésperas de viagem,

Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,

Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,

Hoje não me resta (à parte o incómodo de estar assim sentado)

Senão saber isto:

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.



Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar

Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem).

Acendo o cigarro para adiar a viagem,

Para adiar todas as viagens.

Para adiar o universo inteiro.



Volta amanhã, realidade!

Basta por hoje, gentes!

Adia-te, presente absoluto!

Mais vale não ser que ser assim.



Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro.

E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.



Mas tenho que arrumar a mala,

Tenho por força que arrumar a mala,

A mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.

Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.

Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,

A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.



Tenho que arrumar a mala de ser.

Tenho que existir a arrumar malas.

A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.

Olho para o lado, verifico que estou a dormir.

Sei só que tenho que arrumar a mala,

E que os desertos são grandes e tudo é deserto,

E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.



Ergo-me de repente todos os Césares.

Vou definitivamente arrumar a mala.

Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la;

Hei-de vê-la levar de aqui,

Hei-de existir independentemente dela.



Grandes são os desertos e tudo é deserto,

Salvo erro, naturalmente.

Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!



Mais vale arrumar a mala.

Fim.



4-10-1930


De Fernando Pessoa, Obras Completas:
Poesias de Álvaro De Campos, 1944
In, Século de Ouro
Antologia Crítica Da Poesia Portuguesa Do Século XX

1 comentário:

Gerana Damulakis disse...

Às vezes me pergunto se existe algum verso de Pessoa ele mesmo, ou os outros, que não seja genial.Simplesmente genial.