27/01/2010

Ana Luísa Amaral - O Excesso Mais Perfeito

Queria um poema de respiração tensa

e sem pudor.

Com a elegância redonda das mulheres barrocas

e o avesso todo do arbusto esguio.

Um poema que Rubens invejasse, ao ver,

lá do fundo de três séculos,

o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,

e reclinados os braços nus,

só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,

e um anjinho de cima,

no seu pequeno nicho feito nuvem,

a resguardá-lo, doce.

Um tal poema queria.



Muito mais tudo que as gregas dignidades

de equilíbrio.

Um poema feito de excessos e dourados,

e todavia muito belo na sua pujança obscura

e mística.

Ah, como eu queria um poema diferente

da pureza do granito, e da pureza do branco,

e da transparência das coisas transparentes.

Um poema exultando na angústia,

um largo rododendro cor de sangue.

Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,

ao passar, parasse deslumbrado

e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico

das suas pulseiras tão (mas tão)

preciosas.



Nu, de redondas formas, um tal poema queria.

Uma contra-reforma do silêncio.



Música, música, música a preencher-lhe o corpo

e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,

e uma fonte de espanto polifónico

a escorrer-lhe dos dedos.

Reclinado em divã forrado de veludo,

a sua nudez redonda e plena

faria grifos e sereias empalidecer.

E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão puras,

tremer de medo só da fulguração

do seu olhar. Dourado.



Música, música, música e a explosão da cor.

Espreitando lá do fundo de três séculos,

um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus

anjos

junto dos anjos nus deste poema,

cantando em conjunção com outros

astros louros

salmodias de amor e de perfeito excesso.



Gôngora empalidece, como os grifos,

agora que o contempla.

Esta contra-reforma do silêncio.

A sua mão erguida rumo ao céu, carregada

de nada —




 Ana Luisa Amaral
De Às Vezes o Paraíso, 1998
Século de Ouro Antologia Crítica Da Poesia Portuguesa Do Século XX

3 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Excelente o poema. Tive a clara impressão de que já havia lido. Seria numa antologia que um amigo me trouxe de Portugal? Ao sair do computador, irei verificar. Bjão para vc.

Marta disse...

lindo!

Eliane F.C.Lima disse...

Também achei lindo. Mas não acho que essa palavra exprima bem. Surpreendente. Não acho que isso diga tudo. Alma do poético. Talvez...
Gosto de literatura: analiso-a em http://literaturaemvida2.blogspot.com. Produzo-a em http://poemavida.blogspot.com e http://conto-gotas.blogspot.com.
Se puder, vá me visitar lá.
Grande abraço,
Eliane F.C.Lima