21/05/2011

Cemitério de Pianos

«  Era domingo. Acordei a meio da manhã com um sabor amargo e pastoso a envolver-me todo o interior da boca. Vesti umas calças e, em tronco nu, abri a porta do quintal e dei dois passos: a terra debaixo dos pés. Habituei-me devagar à luz que me encadeava, mas não aguentei o sol na cabeça e, por isso, parei-me debaixo do limoeiro.
   Aos domingos os pássaros são mais livres. Exibem-se em voltas no ar porque sabem que as pessoas reparam mais neles. Aos domingos, o barulho das ruas é diferente: as vozes, despreocupadas, assentam sobre o espaço vazio deixado pelas vozes ásperas dos dias da semana.Aquele era um domingo assim, era um domingo domingo, mas eu despertava de um mundo onde não havia domingos e, para mim, aquele dia era estranho, da mesma maneira que me teria sido estranho qualquer outro dia.
   Passei a boca por água. Lavei-me debaixo da torneira do tanque. Respirei. Gotas de água, pousadas nas minhas pestanas, davam brilho aos cantos do tanque onde a minha mãe já não lavava roupa. Entrei em casa, limpei-me e, ao vestir-me, os ossos deram estalidos secos, como ramos de videira a partirem-se.
   Tentei pensar enquanto caminhava pela rua. Era domingo. Passava por senhores com correntes de relógio a saírem-lhe dos bolsos e por senhoras que regressavam da missa.
   Aos poucos, voltava a aproximar-me de mim próprio. Aos poucos, era como se voltasse a ganhar os gestos das minhas mãos, os movimentos nos movimentos das minhas pernas. Era como se eu voltasse ao meu rosto.
   Ao bater à porta da pensão com os nós dos dedos, senti esse instante como a entrada nítida e definitiva na realidade: todos os contornos regressaram aos objectos: as cores deixaram de derivar em manchas. Enquanto esperava, fixava a porta, imóvel, à minha frente. Atrás dela, escutava uma corrente de passos que se aproximava. E o som da fechadura a abrir-se. E a porta a afastar-se, a abrir-se.
   Era ela. Era o seu rosto que estava diante de mim a olhar-me. Eram os seus lábios suspensos, a profundidade infinita dos seus olhos, a pele. Se esticasse um braço poderia tocá-la. Uma superfície de calor envolveu-me. O sol colou-se todo ao meu corpo e transformou-me em pele quente. Também ela não esperava ver-me ali. O seu rosto ganhou novas formas ao olhar-me. Qualquer outro não teria conseguido distinguir. Nos cantos dos lábios, erguia um sorriso muito subtil.
   Nesse silêncio luminoso, não sei como fui capaz de dizer as palavras da frase banal que apenas perguntava pelo italiano. Não sei como fui capaz de flutuar na vastidão dos seus olhos: o horizonte: e perguntar-lhe se o italiano não tinha deixado nada para mim. Não sei como não morri: o coração a rebentar-me no centro do peito: quando ela, sem parar de olhar-me: a pureza e a beleza; abanou a cabeça, tão devagar, para um e para o outro lado: a pele lisa do seu pescoço: a maneira como os meus dedos poderiam deslizar, demoradamente, sobre a pele lisa do seu pescoço. O italiano tinha ido embora sem me pagar e eu apenas conseguia olhá-la e sorrir.
   Ao despedirmo-nos, presos aos olhos um do outro, continuámos a sorrir porque queríamos dizer muitas coisas.»

Págs 60/61, in, Cemitério de Pianos
José Luís Peixoto, Quetzal
 

Sem comentários: