Sir Richard Burton
1821-1890
O Mal das Fronteiras
«Ao apresentar-se a outro homem, um cavalheiro devia começar por referir o lugar e a circunstância em que ocorreu a sua morte, pois esta diz muito mais sobre quem é do que a menção ao nascimento e nacionalidade.
Infelizmente só os mortos e os videntes mais esclarecidos se podem dar a um tal luxo. No meu caso seria assim: chamo-me Richard Francis Burton e morri em Trieste a 20 de outubro de 1890, aos 69 anos. Viajei, interessei-me por tudo quanto é humano, incluindo Deus, e escrevi. Além disso amei muitas mulheres. Ao olhar para trás - para os lados ou para diante, é indiferente, pois o tempo parece-se mais com uma esfera do que com uma linha teta - dou-me conta de que os melhores momentos da minha vida foram passados nos braços dessas mulheres.
Aprendi 29 línguas, e sabia falá-las com o sotaque próprio, porque o bom domínio delas, acreditava eu, me ajudaria a compreender a restante humanidade. Podem acrescentar a este generoso propósito o prazer de insultar alguém no seu próprio idioma. Nesse afã de me aproximar dos outros cheguei mesmo a transformar-me neles, e com certo sucesso. Fui muçulmano afegão em Meca; peão cigano nos canais do Rio
Indo; dervixe nos meses em que explorei, para a Coroa Inglesa, algumas das regiões mais remotas do Punjab. Traduzi para inglês As Mil e Uma Noites e o Kama Sutra, além da obra maior de um extraordinário, porém obscuro, poeta português, Luís de Camões, cujo destino sempre me pareceu estranhamente semelhante ao meu.
Posto isto, não vos surpreenderá saber que a ideia de fronteiras políticas suscita em meu espírito um sentimento de viva repugnância. Depois de morto a antipatia por este conceito aprofundou-se, em proporção direta ao sucesso com que o vi afirmando no limitado mundo dos vivos: o vosso mundo. Assisto desgostoso ao desespero com que centenas de africanos vendem o pouco que têm para, colocando em risco a própria vida, transporem uma fronteira que a cada dia se fecha mais. (...)
Às vezes vem-me uma vontade imensa de regressar à vida com o único propósito de me juntar aos deserdados do mundo, aos homens e mulheres de boa vontade, no combate pelo fim das fronteiras. Chegará o dia em que todas as pessoas poderão com verdade e orgulho proclamar-se cidadãos do mundo. Um cidadão do mundo é aquele que se vê a si mesmo sempre que olha para qualquer outro homem.»
(texto com supressão)
José Eduardo Agualusa, O Lugar do Morto
Escritores desencarnados refletem, a partir do Além, sobre os dias que correm.
Lisboa: Tinta da China MMXI
Às vezes vem-me uma vontade imensa de regressar à vida com o único propósito de me juntar aos deserdados do mundo, aos homens e mulheres de boa vontade, no combate pelo fim das fronteiras. Chegará o dia em que todas as pessoas poderão com verdade e orgulho proclamar-se cidadãos do mundo. Um cidadão do mundo é aquele que se vê a si mesmo sempre que olha para qualquer outro homem.»
(texto com supressão)
José Eduardo Agualusa, O Lugar do Morto
Escritores desencarnados refletem, a partir do Além, sobre os dias que correm.
Lisboa: Tinta da China MMXI

2 comentários:
cduxa,
vim até aqui para desejar-lhe um ótimo dia e um excelente final de semana!!!!
abraços
Olá Veronica
Agradeço e retribuo o miminho.
Um Xi
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