02/03/2012

A CIDADE E AS SERRAS


A cidade e as serras , Eça de Queiroz. - [1ª ed.]. - Porto : Livr. Chardron, 1901

"Já a tarde caía quando recolhemos muito lentamente. E toda essa adorável paz do céu, realmente celestial, e dos campos, onde cada folhinha conservava uma quietação contemplativa, na luz docemente desmaiada, pousando sobre as coisas com um liso e leve afago, penetrava tão profundamente Jacinto, que eu o senti, no silêncio em que caíramos, suspirar de puro alívio.
Depois, muito gravemente:
Tu dizes que na Natureza não há pensamento...
Outra vez! Olha que maçada! Eu...
Mas é por estar nela suprimido o pensamento que lhe está poupado o sofrimento! Nós, desgraçados, não podemos suprimir o pensamento, mas certamente o podemos disciplinar e impedir que ele se estonteie e se esfalfe, como na fornalha das cidades, ideando gozos que nunca se realizam, aspirando a certezas que nunca se atingem!... E é o que aconselham estas colinas e estas árvores à nossa alma, que vela e se agita que viva na paz de um sonho vago e nada apeteça, nada tema, contra nada se insurja, e deixe o mundo rolar, não esperando dele senão um rumor de harmonia, que a embale e lhe favoreça o dormir dentro da mão de Deus. Hem, não te parece, Zé Fernandes?
Talvez. Mas é necessário então viver num mosteiro, com o temperamento de S. Bruno, ou ter cento e quarenta contos de renda e o desplante de certos Jacintos..."
                                   
Eça de Queirós, A cidade e as serras.



(postal com um retrato de Eça, de autoria de António Carneiro - 1909 é impresso em Paris na Imp. Kossuth & Cie, com o autografo de Eça e com a frase "Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia")

2 comentários:

mfc disse...

É com toda a certeza o livro que mais vezes reli!

jorge esteves disse...

Jacinto ou Eça? A verdade é que, curiosamente, o livro acaba por ser publicado (pouco tempo) depois da sua morte. Jacinto em busca da Felicidade...

abraço